Suaveolens

Este blog foi criado por um cearense apaixonado por plantas medicinais e por sua terra natal. O título Suaveolens é uma homenagem a Hyptis suaveolens uma planta medicinal e cheirosa chamada Bamburral no Ceará, e Hortelã do Mato em Brasília. Consultora Técnica: VANESSA DA SILVA MATTOS

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Local: Brasília, Distrito Federal, Brazil

Cearense, nascido em Fortaleza, no Ceará. Criado em Ipueiras, no mesmo estado até os oito anos. Foi universitário de agronomia em Fortaleza e em Recife. Formou-se em Pernambuco, na Universidade Rural. Obteve o título de Mestre em Microbiologia dos Solos pelo Instituto de Micologia da Universidade Federal de Pernambuco. Também obteve o Mestrado e o Doutorado em Fitopatologia pela Universidade de Brasília. Atualmente é pesquisador colaborador da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília.

31.3.18

DESORDEM E RETROCESSO



DESORDEM E RETROCESSO
Por
Dalinha Catunda
*
Saudades da pátria amada
Saudades da mãe gentil
Do hino que eu cantava
Com veneração servil
Era com a mão no peito
Que eu cantava com respeito
O Hino do meu Brasil.
*
A bandeira hasteada
Chegava a me arrepiar
O verde era a esperança
Lá no alto a tremular
Já não vejo a paz no branco
E vendo meu país manco
Dá vontade de chorar.
*
Nossa pátria degradada
Padece nesse processo
Hoje já não acredito
Na frase: ORDEM E PROGRESSO
É triste ver a nação
Em plena degradação
Desordem e retrocesso.
*
Quando o sentimento pátrio
Bater na população
Quando o povo descobrir
Que tem voz vez e razão
Ajudará o Brasil
Sem por a mão no fuzil
Com coragem e união
*
Versos de Dalinha Catunda

Maria de Lourdes Aragão Catunda – Poetisa, Escritora e Cordelista. Nascida e criada em Ipueiras-CE, conhecida popularmente como Dalinha Catunda, vive atualmente no Rio de Janeiro. Publica nos jornais "Diário do Nordeste" e "O Povo", nas revistas "Cidade Universidade" e "Municípios" e nos blogs: Primeira Coluna, Ipueiras e Ethos-Paidéia. É membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. É co-gestora convidada do blog Suaveolens, além de ter blog próprio: (cantinhodadalinha.blogspot).









23.3.18

MEMÓRIAS CAPITULO 10: O JIPE VOADOR E O ANJO DA GUARDA BAIANO


Nascer do sol na Praia de Boa Viagem em Recife


O ANJO DA GUARDA BAIANO

Por

Jean Kleber Mattos


O primeiro lugar onde eu vi o sol se pondo no oceano foi Salvador. Em Recife, vejo o sol nascendo quando estou à janela de um hotel na Praia de Boa Viagem. Em Fortaleza, comparecia às “Luaradas” na orla, em dia de lua cheia. Ver a lua surgindo no horizonte marinho, imensa, é deslumbrante! Os grupos reúnem-se e sentam-se sobre a areia da praia para cantar e beber.

Quando vi Salvador pela primeira vez em meados dos anos 60, século XX, extasiei-me com a beleza da cidade. Anos mais tarde, já morando em Brasília, certo dia cansei-me do tédio da cidade. Era um sábado de manhã. Estacionei no aeroporto e comprei passagem para Salvador. Poucas horas depois estava na praia com amigos. Privilégio.

Em Salvador eu encontrava minhas antigas amizades cearenses que para lá se haviam transferido, Tereza e Marconi, e os novos amigos Carlos, Isabel , Arminda e Evandro.

Anos 70, as Discothèques estavam em alta. A fita das “Frenéticas” embalava os bailes:

“Mostre sua cara...

solte suas feras....

caia na gandaia

entre nessa festa!”...

Nos fins de semana o programa começava na sexta feira à noite. O estilo Discothèque com sua dança solta ensejava mais flirts. Inicialmente dançando em grupo, aos poucos o bailarinos iam-se dispersando e não raro, ao cabo de algum tempo,  o grupo havia crescido com o adendo de paqueras. Novas amizades, novos namoros.

Minha amiga Tereza narrou-me certa vez que, em uma das baladas, um moço que ela nunca vira antes acercou-se do grupo na pista de dança. Não demorou muito e estava dançando agregado e de olho nela. Simpatia mútua, quando parou o som, estavam de papo. Apresentações, apertos de mão, boas vindas ao que chegava, o ritual de sempre. Parecia que o grupo o absorvera bem.

Finda a noite, o moço ofereceu carona à Tereza. Ela ficou em dúvida. Afinal, viera no carro do grupo e certamente voltaria com eles. O moço, embora simpático, era até então um deconhecido, o que gerava o receio de alguma cilada.

Estimulada pelo grupo, Tereza aceitou a carona. Alguém do grupo falou, como de costume:

- Veja lá, hein ? Cuide bem de nossa amiga !

Ao que o moço respondeu:

- Fiquem tranquilos. Eu sou o anjo da guarda dela !...

Todos riram e o comboio partiu. Conforme prometido, o moço deixou Tereza em casa na tranquilidade. Ela dormiu como uma princesa.

Na manhã seguinte, o telefone tocou ainda cedo. Sonolenta, Tereza atendeu e levou um susto. O carro do grupo havia capotado de volta da boate e todos tinham sido levados para o hospital. Havia feridos mas ninguém corria risco de vida ou de sequelas graves.

Graças a Deus.



O JIPE VOADOR

Por

Jean Kleber Mattos 


Estava com dezesseis anos quando, em 1962, retornei a Ipueiras. Oito anos haviam decorrido desde a partida em janeiro de 1953. Viajei de trem com minha mãe, D. Mundita, e a prima dela, Carlinda, professora de piano. Curta permanência. Apenas alguns dias.

Hospedamo-nos na casa de meu padrinho, Costa Matos. Lá, fui apresentado a um sobrinho da Alderí, dona da casa, também adolescente e hóspede em férias. Bom companheiro.

Em moda na TV da época, os espetáculos marciais: "Tele Catch". À tarde, para diversão das crianças, o Lalú e o Carlito, filhos do Costa Matos, simulávamos uma luta de boxe como na TV. Encarapitados nos berços e redes, os meninos divertiam-se com o "show". Volta e meia um golpe mais duro escapava. Pedidos de desculpas. Quase não lembrava hoje do real nome do colega, Marconi, pois Costa Matos, exímio em colocar apelidos, o chamava de “Galante”. Uma óbvia referência ao perfil de paquerador, com capricho no vestir e no pentear o cabelo que lhe compunham a figura.

Localizei recentemente o Carlito, engenheiro de pesca Carlos Maria Moreira Costa Matos, Chefe de Gabinete do Ibama-Ceará. Lalú formou-se em medicina. É o Dr. José Cláver Moreira Costa Matos, famoso médico com destacada atuação em Fortaleza, no tratamento de crianças vítimas de incêndio.

No roteiro de visitas, inevitável, os miraculados. A imagem milagrosa da Virgem de Fátima estivera em Ipueiras em 1953 e dois amigos nossos, o Vicente que era mudo e a mãe da Isa Catunda, antes quase cega pela catarata, haviam sido recompensados por sua fé e devoção. Incrível ver o Vicente falar. Emocionante ver a mãe da Isa enxergar. Visitamos também Tia Catarina que havia morado no Videl, e D. Augusta, professora, amiga de minha mãe.

De início, o social pareceu prejudicado por minha condição momentânea de esportista. Sócio atleta de natação do Clube dos "Diários", eu somente permaneceria na equipe se atingisse a marca olímpica do clube nas provas que estavam por vir. Cuidava para não consumir álcool e dormir cedo, além de ser não fumante.

Eu já percebera que a cerveja era por certo a grande atração da rapaziada naquela idade. À noite íamos à praça principal encontrar as moças. Também comparecíamos às festas. Lá, encontraria meus primos Francisco e Manuelito. Lembro-me que o Carlito observava uma das festas à janela do Paço da Prefeitura. Em dado momento, comunicou-me que estava indo para casa, dormir. Preparei-me para acompanhá-lo, pois tratava-se de uma criança. Ele recusou dizendo que andava a vontade em Ipueiras, a qualquer hora do dia ou da noite.

Percebi então que a vivência em Fortaleza me fizera esquecer quão segura era a velha Ipueiras.

Algo me encantava de modo especial. A delicada beleza das moças. Hoje, passadas décadas, a memória alcança dois ou três nomes, se muito. Talvez porque a identificação se dava com mais ênfase no "filho de quem", que propriamente no nome de batismo. Assim, fazem eco em minha mente apenas os sobrenomes: Pinho, Catunda, Aragão, Mourão, Souza .... Enfim, os nomes das tradicionais famílias ipueirenses.

Em duas tardes, o ponto de encontro foi o Arco do Triunfo de N. S. de Fátima. Grupo misto. As moças comentavam sobre o ganho de indulgência a quem rezasse sob o arco. Lembraram-me de assumir uma atitude respeitosa no local. Padre Belarmino tinha especial zelo por aquele ambiente. Aviso desnecessário. Eu ainda estava impactado pelo encontro com os miraculados.

Numa tarde, alguns amigos convidaram-me para dar uma volta de jipe pela cidade. Findamos na pista de pouso, perto da estação de trem. O veículo era dirigido por Vavá, filho do Tim Mourão, ex-prefeito da cidade. Alguém falou que íamos levantar voo. Fiquei curioso. De fato, o veículo partiu da cabeceira da pista. O motorista com o "pé embaixo". O ponteiro do velocímetro tremulava na marca dos cem. Os passageiros transpiravam adrenalina.

Faziam sucesso na época os "pegas" automobilísticos do filme "Juventude Transviada" protagonizado pelo "enfant terrible" James Dean. Eu estava ali vivenciando a versão Ipueirense. Genial!

Na volta de trem para Fortaleza, dois ou três colegas estavam junto. Iam à capital. Lembro-me que Manuelito integrava a comitiva. Demos preferência a viajar no vagão restaurante. Os amigos haviam mandado "baixar" algumas cervejas. 

Grande sucesso na época com o intérprete Miltinho, os versos da canção:

"Saudade! Criatura impertinente, entra no peito da gente e dói como não sei o que..." 

Nós cantávamos e batucávamos na mesa. Eu pensava na beleza singela de uma das moças de Ipueiras. Não conseguia esquecê-la. Percebia agora que a flecha de Cupido transpassara-me o coração. Havíamos prometido trocar cartas. Romântico.

Hoje os jovens comunicam-se pela Internet. Mensagens ultrarrápidas e coloridas. No início dos anos sessenta dominavam as cartas, postadas no correio. Demoravam a chegar, mas traziam o cheiro e a vibração da musa. Cartas eram cheiradas, beijadas e abraçadas. Por certo ainda o são, mesmo neste mundo "wébico" e globalizado. Resolvi por alguns momentos esquecer a "performance" atlética e acompanhar os amigos na cervejada.

Afinal, ninguém é de ferro!



20.3.18

MEMÓRIAS CAPÍTULO 9 : A FÉ DO POVO E OS CAMINHOS DA VIDA



IPUEIRAS DE FÉ

Por
Jean Kleber Mattos

O primeiro casamento religioso que eu vi, foi em Ipueiras. Final dos anos quarenta, século vinte. Foi o casamento de meu padrinho de crisma, José Costa Matos com a ipueirense Alderi Moreira. Quando se é criança vê-se tudo maior, daí foi a cerimônia mais grandiosa que testemunhei nesta vida. Bonita e poderosa. Paramentos de gala com as cores do Vaticano. Fios d´ouro à vontade. Padre Francisco Correia Lima, o vigário, oficiou.
A fumaça branca emanada do turíbulo embalado pelo acólito em movimentos pendulares, dava um toque mágico ao ambiente do altar-mor. Se bem me lembro, o acólito vestia uma batina vermelha. Por sobre ela, uma sobrepeliz branca, com mangas rendadas. Também uma pala vermelha. Meus conhecimentos sobre liturgia católica são escassos, mas acho que era isso.
Lembro-me de umas flores brancas artificiais muito bonitas que surgiam no altar principal em dias de festa. Adonias era o sacristão. Acendia e apagava os candelabros. Havia uns cilindros brancos que pareciam velas. Não eram. Cotos de vela eram habilmente encaixados num depósito no ápice da peça. Estes sim, velas de parafina. O acendedor era uma peça metálica na extremidade de uma vara. Também servia para apagar. Tinha um pavio e um abafador em forma de cone metálico. Tudo na mesma peça.
Aquilo tudo me encantava. Queria ser padre. "Celebrava" missas em casa. Procurava imitar os movimentos do padre. Pequenas bolachas tipo "Ceci" faziam as vezes de hóstia, para delícia dos colegas. A comunhão era sem dúvida o momento mais aguardado.
Lembro-me de minha primeira comunhão. Meus pais envolveram o Educandário na celebração. Ofereceram um café da manhã a todos os alunos. Pediram-lhes que comparecessem vestidos de branco. Os que já haviam feito a primeira comunhão comungaram comigo. Depois da missa, o café "apoteótico" na sede da escola. Todos haviam sido convidados. Uma festa para ninguém esquecer.
E o jejum para a comunhão?. Às vezes batia a hipoglicemia. As velas pareciam tremular um pouco demais. Leve desmaio. "Agonia", dizia-se. Recuperação rápida. Eu gostava da cerimônia de "Te Deum", realizada sempre ao anoitecer. É rápida e bonita, bem ao gosto de uma criança. O ouro do cálice, a custódia dourada e radiante, o "design" do sacrário. Um encanto!
Eu gostaria de acolitar, mas era muito criança. Frota Neto, Nemésio, Marcondes e mais alguns, que eram maiores, já acolitavam a missa em latim. Meu amigo Nemésio, filho de "seu" Edmundo, ainda deu-me algumas lições, mas não adiantou:
- Introibo ad altare Dei...!
- ........!
- Qual é a resposta?
- Esqueci...
- Ad Deum qui lætificat juventutem meam!
Minha avó, D. Luizinha, com desvelo, confeccionou uns paramentos de cor verde, adequados ao meu tamanho. Fez-me a surpresa aproveitando um regresso meu de Fortaleza. Inesquecível.
Festas dos santos com quermesses, leilões e queima de fogos. Lembro-me de um avião artesanal que nas noites de festa corria num fio, propelido por pólvora. Ele partia da torre da igreja e ao chegar próximo ao solo, explodia. Neste momento, na Praça da Matriz, ficávamos com a respiração suspensa. Numa noite, a explosão retardou e um colega meu tentou segurar o brinquedo que então explodiu. Queimadura grave. Danos às mãos.
O menino, filho de "seu" Gonçalo Ximenes, teria que esperar a lenta cicatrização com a mão enfaixada. Foi, durante algum tempo, o herói da meninada.
E as procissões? Andores enfeitados com flores diversas e aspargo ornamental. A impressionante rigidez das imagens. Filas de fiéis caminhantes, alguns exibindo as fitas identificadores das congregações religiosas: Marianos e Filhas de Maria em destaque. Tudo isso ao som dos hinos, contando com a harmonia da banda de música local: "Dá nossa fé oh Virgem...o brado abençoai...Queremos Deus...Que é nosso Rei...Queremos Deus...Que é nosso Pai..."
Havia um hino de beleza ímpar, que era entoado na hora da comunhão. Aí, destaque para a professora Diana ao órgão (chamado à época de "harmônio"): 
"Jesus nosso Pai...
Jesus Redentor...
Te adoramos...
Na Eucaristia...
Jesus de Maria...
Jesus Rei de amor!" 
Este maravilhoso hinário ainda hoje me inspira, muito embora não seja eu assíduo à Igreja Católica atualmente.
O escritor e cronista Carlos Heitor Cony, que se dizia ateu, volta e meia era visto entre os fiéis, participando de missas no Rio de Janeiro. Ele também se encantava com a beleza da liturgia católica, sobretudo com os hinos.
Somente uma cerimônia me assustava. A missa de requiem. Paramentos negros com realces brancos. O contraste total. Atmosfera pesada. Perda e sofrimento. Na véspera, o sino em toque compassado anunciando a jornada do féretro. "A misericórdia da Igreja", conforme enfatizaria no futuro, o dramaturgo Nelson Rodrigues.Quase sempre aos domingos eu via, à porta da igreja, um ou outro "anjinho" em seu pequeno esquife de cor azul clara, ornamentado com flores de "Jasmim de Caiena". Cerimônia fúnebre. Os altos índices de mortalidade infantil refletiam o subdesenvolvimento da região. Impossível falar minimamente sobre a Igreja Católica na Ipueiras daqueles idos, sem mencionar as ladainhas vespertinas que se seguiam à reza do terço. Tudo em latim. Público predominantemente feminino. As Filhas de Maria, as donas de casa e suas crianças.
Sancta Maria,
- Ora pro nobis.
...Sancta Dei Genitrix, Sancta Virgo virginum, Mater Christi, Mater divinæ gratiæ, Mater purissima, Mater castissima...Lembro-me de uma professora, Zélia, amiga de minha mãe, coordenando a reza.
Quando estive em Ipueiras em 1962, com dezesseis anos, ouvi, de viva voz, em presença de minha mãe, D. Mundita, e da prima Carlinda, o relato fantástico de dois ipueirenses miraculados.
Madrugada do dia nove de novembro de 1953. Começavam os preparativos para a partida da imagem peregrina da Virgem de Fátima, vinda de Portugal e que visitava Ipueiras. Os fiéis gritavam "vivas" a Nossa Senhora. De repente um "viva" diferente se ouviu. Era Vicente, o padeiro mudo de nascença, que acabara de aclamar a santa. Bem perto dali, ainda na Praça da Matriz, bem ao lado da igreja, a mãe da catequista Isa Catunda, quase cega de catarata, disse à filha que iria para casa, que era próxima. A filha aquiesceu e disse: "eu levo a senhora". "Não precisa", respondeu a mãe: "estou vendo o caminho."
Os milagres foram relatados mais tarde no livro "Vendo a Vida Passar" de Padre Francisco Correia Lima, com trechos reproduzidos no livro "Quase" de Frota Neto, e por Marcondes Rosa, em crônica, no site de Ipueiras.
Em regozijo, Ipueiras fez construir na rua General Sampaio, em frente à casa do padre vigário, um arco, que Frota Neto em seu livro "Quase" chamou de Arco do Triunfo de N.S. de Fátima. O monumento é hoje de alvenaria, e feito, segundo Bérgson Frota em artigo sobre o tema no blog de Ipueiras, pelo mesmo arquiteto que fez o Cristo de Ipueiras, Pedro Frutuoso. A obra foi concluída em 1954.
O arco representa o triunfo da fé do povo de Ipueiras !



TITO, O ZAGUEIRO

Por
Jean Kleber Mattos


O cenário é um pequeno campo de futebol num terreno lateral à Igreja do Cristo Rei, em Fortaleza, no Ceará, sede da Congregação Mariana. Ano de 1958. Times da categoria infantil disputam um campeonato. Um deles denomina-se Ceará. O uniforme é alvinegro como o da famosa equipe de profissionais. Tenho 13 anos. Jogo no time. Sou o goleiro. À minha direita durante todo o campeonato, um zagueiro se desdobra como penúltima barreira. A bola que passar por ele sou obrigado a pegar. Pouca coisa passa, felizmente. O zagueiro é bom. Chama-se Tito. No ataque, nossos companheiros fazem bem o seu papel. Ao final do torneio fomos campeões.
Mas o zagueiro chama a atenção de todos. Inteligência e destemor. Ao partir sobre o atacante o fazia com o corpo levemente inclinado para traz. Se atingido por uma bolada, a inclinação diminuiria os danos físicos, além de modificar a trajetória da bola que, resvalando, poderia escapar da grande área.
Futebol é esporte bruto e a canela sofre. Um flagrante de coragem: por vezes o zagueiro jogava com a canela enfaixada. Mas jogava. E o fazia com o mesmo denodo. Eu observava curioso aquela natureza heroica.
O ambiente era religioso. Uma agremiação mariana e um coral eclesial. Eu atuava nos dois. Um ano após meu ingresso no coral, Tito nele ingressou. Já lá estavam seus irmãos Ildefonso e Jorge. Coral misto. Rapazes e moças. Cantávamos nas missas dominicais, nos casamentos e nas celebrações religiosas mais solenes. Às vezes participávamos de recitais no Teatro José de Alencar e na televisão.
Veio o vestibular. Entrei na faculdade. Uma vez lá, fui nucleado pela Juventude Universitária Católica (JUC), da igreja progressista (alguns diziam esquerdista). Tito ainda estava no segundo grau, mas já optara pela Juventude Estudantil Católica (JEC). Uma experiência diferente. O senso crítico era o apanágio daquelas “Juventudes”.
Adolescentes que éramos, preferíamos ter como namoradas as militantes do movimento. Comunhão de idéias e ideais. Um dia, conversando longamente com minha namorada da época, ela referiu-se ao fato de, algum tempo antes, Tito ter-lhe proposto namoro. “Qual foi sua resposta?”-perguntei. “Pedi um tempo”, disse-me ela. Menina sensível, disse-me que percebera uma aura especial no candidato, como se ele estivesse predestinado à vida monástica.
Dois anos mais tarde, muda o cenário. Estamos em Recife, na rua dos Coelhos, vizinhança do Hospital Pedro II. Moro na Casa dos Permanentes, um pensionato destinado a membros de equipes de direção da Ação Católica de âmbito regional. Pertenço à equipe regional da JUC-Nordeste. Na mesma casa residem os permanentes da JEC regional. Denis, de Alagoas, Luiz, do Rio Grande do Norte e Tito, do Ceará.
Compartilhamos todos o mesmo dormitório. Ainda estou cursando agronomia na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Uma vida cheia de reuniões, orações, leituras e relatórios. Também sobressaltos, pois corre o ano de 1965, em plena ditadura militar, e nós, tidos como esquerdistas perigosos, estávamos fadados pelo menos à prisão.
Sempre abominei a violência desde que me tive por gente. Optei na época por uma linha de meditação com mais reflexão e menos provocação. Eu tinha a impressão de que meus colegas nada temiam de tantos riscos que optavam por correr. Passeatas, ações secretas, atuação em centros acadêmicos aguerridos, enfim, quase todos em ansioso ritmo de enfrentamento da ditadura.
Eu temia por minha sorte. Medo de ser preso ou morto. Preferia, portanto, as ações mais institucionais do tipo padrão, como, por exemplo, seguir o genial Dom Helder Câmara em seu trabalho pastoral, de natureza mais diplomática. À noite, ao invés de ler as geografias de Josué de Castro eu preferia conhecer a vida de Charles de Foucault, missionário na África, que foi considerado digno de ser chamado, por sua caridade, "Irmão Universal".
Um dia surpreendi meu colega Tito com meu livro nas mãos, em atenta leitura. Pediu-me o livro por empréstimo. Obviamente emprestei-o. Daquele dia em diante aquele livro passou a ser o tal da cabeceira do Tito. Findou que dei-o de presente. Ele lia e anotava comentários no próprio livro.
Veio minha formatura em junho de 1966. Deixei a JUC e a Casa dos Permanentes e segui para a pós-graduação e para a vida profissional.
Somente dois anos depois, já em Brasília, voltei a ter notícias do Tito. Ele optara pela vida monástica. Seria Dominicano.


+++

NOTA: Tito de Alencar Lima, o "Tito" dessa narrativa, viria a ser preso durante o regime militar que vigorou de 1964 até 1985 no Brasil. Torturado, junto com outros dominicanos, conforme se pode ver no filme "Batismo de Sangue", faleceu algum tempo depois na França, vítima de suicídio.

18.3.18

MEMÓRIAS CAPÍTULO 8 : FÉRIAS NO CEARÁ E REMINISCÊNCIAS DE INFÂNCIA



FÉRIAS NO CEARÁ E REMINISCÊNCIAS DE INFÂNCIA 

Por
Jean Kleber Mattos


PEGA LADRÃO

A alcunha do larápio era "Bolinha". Arrombador de residências. Marginal fichado na polícia de Fortaleza como perigoso. Arma branca. Sabe-se lá por qual motivo, resolveu deixar a capital e fazer incursões pelo interior do Ceará. Caminhos tortuosos o trouxeram a Ipueiras, onde morávamos, no fim dos anos quarenta, século vinte.
Na primeira noite de atividade arrombou três residências, uma delas o Educandário, onde morávamos eu, meus pais Seo Mattos e D. Mundita, minha avó Luizinha, a criada Maria José e um aluno interno, o Antônio Brandão.
No dia seguinte ao assalto, o Antônio, que dormia numa rede na principal sala de aula, deu por falta do par de alpargatas que deixara no chão sob a rede. Uma porta forçada forneceu a pista. Alguém entrara sem ser convidado. A notícia logo se espalhou. Quase certo que era alguém que vinha de longe, pois aquele tipo de crime não figurava em nossa lista de ocorrências.
O contingente policial era pequeno. Comandava-os o sargento Almeida. Logo, pacatos cidadãos da cidade ofereceram-se para compor uma patrulha de vigilantes que auxiliariam a polícia na captura do ladrão.
Minha avó narrou-nos então sua experiência da noite do assalto. Sono leve, acordou em meio à madrugada com um lampejo dentro de casa. Acendeu uma vela. Nada aconteceu. Apagou a vela, por fim. Daí a pouco, outro lampejo. Luz forte. Acendeu novamente a vela e ficou atenta. Nenhum barulho. Não mais lampejos.
Naquela época, rolava a crença de que lampejos inexplicáveis dentro de casa durante a madrugada, eram um sinal do além, avisando que estava próxima a "passagem" de alguém. Desencarne. Ela havia ficado meio preocupada. Diante, porém, dos novos fatos que agitavam a cidade, entendeu que os lampejos poderiam ser da lanterna do ladrão.
Neste dia a cidade dormiu em sobressalto. Noite escura como breu. A patrulha era pequena mas nuclearia em sua passagem eventuais dorminhocos, aos gritos, se houvesse necessidade.
De repente, um alarme no meio da noite: aqui! Alguém percebera o que poderia ser o facínora esgueirando-se de uma casa. A guarda e a patrulha cidadã acorreram. Lembro-me de Manoel Dias, o dentista, como um dos nucleados.
Tática de guerrilha, o grupo espalhou-se em leque para fechar os flancos, até que, de um quintal, um grito denunciou a presença do fugitivo. Sem chance para ele. Foi finalmente capturado. No dia seguinte, fila de gente à porta da cadeia para ver a presa. Objetos recuperados eram entregues aos donos.
As alpargatas do Antônio Brandão estavam lá. Uma das tiras fora parcialmente cortada à faca para acomodar o pé do ladrão, que era maior. Mesmo assim, Antônio qui-la de volta.
Lembro-me de minha avó toda arrumada, pronta para ir à cadeia visitar o detento. Comentou mais tarde sobre o diálogo com ele travado. Coletara a impressão do marginal ao descobrir que adentrara uma escola: "só tinha carteira...!" Sobre a coleta ínfima com a insignificante subtração das alpargatas do adormecido Antônio: "para não sair de mãos abanando..." Também sobre a boa qualidade da luz da lanterna: "a senhora gostou?" No mais, apenas comentários sobre leveza de sono e sinais do além: "credo...!"
O sucesso da caçada abriu espaço para lendas e bravatas nos dias que se seguiram. Comentava-se que um dos policiais "voara" mais de três metros ao precipitar-se sobre o fugitivo, imobilizando-o. Como não poderia deixar de ser, também circulavam as fofocas sobre quem tinha amarelado. E assim, o famoso "Bolinha" entrou, por vias tortas, na história da velha Ipueiras.
Ah! Minha avó anotou a marca da lanterna!


VOANDO COM FROTA NETO

Certo dia eu embarquei no aeroporto de Brasília com destino à Fortaleza, para gozo de férias. Meus pais já moravam comigo em Brasília, mas eu não dispensava aquela pequena temporada anual na terrinha.
Nossa casa em Fortaleza estava sob os cuidados de minha tia, D. Francisquinha, irmã de meu pai, que lá morava com o marido Francisco Fontes e a filha Salete.Uma alegre e numerosa comitiva havia embarcado antes de mim.
Quando entrei no avião ouvi alguém me chamar pelo meu nome "ipueirense" de infância:- Klebinho !
Era Frota Neto, então porta-voz do presidente Sarney, que estava indo à Fortaleza para o casamento da filha. Grande alegria! Muitos anos haviam se passado desde nosso ultimo encontro em Fortaleza, quando eu ainda estava no Cursinho Pré-Vestibular. Naquela ocasião, ele, recém-chegado de Cuba, havia me instruído sobre os programas sociais da ilha, pelos quais se entusiasmara. Meu assento no avião tinha número baixo, logo no início. O dele ficava mais ao fundo. O voo aguardava passageiros de conexão de forma que, por alguns minutos, Frota Neto, com admirável simplicidade, sentado no braço da poltrona, colocou a conversa em dia. Perguntou por "Seo" Mattos, por D. Mundita, deu notícias de amigos de Ipueiras e apresentou-me a alguns colegas jornalistas que o acompanhavam ao grande evento.
Embarcados os passageiros da conexão, a comissária pediu que nos acomodássemos para a partida. Foi quando tive a ideia de documentar aquele encontro histórico. Consegui um pedaço de papel e tão logo o voo estabilizou fui até onde estava o Frota. Pedi-lhe que escrevesse uma mensagem para meu pai, seu professor na escola primária.Com entusiasmo, escreveu a mensagem, enquanto comentava alegremente com seus colegas sobre Ipueiras e nossa infância.
De repente era como se o tempo não tivesse passado. Ali estávamos, meninos de Ipueiras, o Kleber e o "Antônio do Idálio", fazendo nossa pândega. No Bhagavad-gita li, certa vez, uma singela lição sobre a atemporalidade do espírito. Havia um convite a que a experimentássemos. Só o corpo envelhece. Em essência, o nosso pensar, o nosso gostar e o nosso querer permanecem os mesmos. Einstein descreveu a relatividade do "passar do tempo" em função da velocidade. Mas o fato incrível naquele momento, é que a Ipueiras encantada de nossa infância estava nos rejuvenescendo!
De volta para minha poltrona algumas pessoas que eu nunca vira antes, cumprimentaram-me sorridentes. Retribuí satisfeito e acomodei-me no assento. Endorfinas em alta, de repente comecei a me sentir importante. E porque não? Afinal eu era amigo do "ôme"!
Foi aí que "caiu a ficha"...


VAI UM CAFÉ AÍ?

Meu pai, “Seo Mattos”, costumava levar-me, eu criança, ao histórico estádio Presidente Vargas em Fortaleza, para ver jogos de futebol, sempre que o Ceará, nosso time do coração, disputava. Era uma saborosa aventura onde vendedores de roletes de cana e laranjas revezavam-se com seus pregões típicos.
Os impropérios dos torcedores também me divertiam. O tempo passou, eu migrei para outras terras e, passadas décadas, voltando à Fortaleza resolvi conhecer o novo estádio: o “Castelão”. Chegamos eu e meu pai atrasados para a partida noturna e vimos os torcedores entrando livremente. Perguntei se não precisava pagar e me disseram que já haviam transcorrido vinte minutos de partida, tempo a partir do qual a entrada era franca. Ótimo.
Adentramos ao belo e bem iluminado estádio e passamos a desfrutar do espetáculo. Súbito passou-nos ao lado, na arquibancada, um vendedor de café e cigarros. Trazia uma larga e funda bandeja de plástico alçada ao pescoço, com dois compartimentos. Um para cigarros, outro para café. No compartimento do café, duas garrafas térmicas: café doce e café amargo. Numa coluna bem engendrada, copinhos descartáveis.
Compramos café e eu avisei a seu Mattos que iria provocar uma resposta do vendedor ao pagar a conta. Dito e feito. Paguei o café e elogiei a organização e a limpeza dos artefatos do vendedor. Ele agradeceu e eu completei:
- Amigo, café bom mesmo eu tomei no passado, no Passeio Público! O senhor lembra daquelas mulheres que vendiam café em chaleiras envoltas em panos, com uma lata cheia d’água à tiracolo para lavar as xícaras? 
O homem olhou para o alto como se tentasse relembrar. Imaginei que à sua mente assomavam as imagens das gordas mulheres com saias curtíssimas, oriundas do Arraial Moura Brasil, bairro vizinho, onde cresciam manchas de baixo meretrício.
Ele me olhou de frente e sentenciou.
- Eu já sei do que o senhor gosta!
- Do que?-perguntei
- O senhor gosta mesmo é de ver fundo de calça!
Seo Mattos não conteve a gargalhada.


Você gosta de filmes eróticos?

No início dos anos 80 do século XX num determinado período, eu estava de férias em Fortaleza. 
Numa noite, conversávamos em grupo sobre filmes de sexo explícito. Na cidade, o cinema especializado na matéria era mal afamado em virtude de seu público marginal e agressivo, o que inviabilizava a frequência do público feminino. 
Uma amiga nossa reclamava da pouca disponibilidade do artigo àquela época, somente disponível com segurança nos motéis. 
Propus então ao grupo que fossemos em comitiva a um motel, apenas, claro, para vermos um daqueles filmes. 
Meus colegas rejeitaram a ideia. Contudo a mesma foi de pronto aprovada por cinco garotas, uma delas minha namorada. 
Dificuldades com a gerência eram previsíveis, pois seriamos um grupo totalmente atípico para a situação, um homem e cinco mulheres. 
Eu dirigia o veículo. Ao lá chegarmos, de cara fui acusado de promover “suruba”. Nada que uma boa conversa explicando a finalidade da comitiva e sobretudo um breve acordo financeiro não resolvesse a situação. 
Assim, o filme proibido foi visto e todos nós voltamos satisfeitos e comemorando a “façanha”. 
E ainda trouxemos alguns brindes. Sabem aqueles sabonetinhos tipo miniatura? 
Pois é, ganhamos vários...


REABILITAÇÃO 

Um de meus melhores amigos, um conterrâneo, envolveu-se certa vez num acidente com arma de fogo quando morava em Goiânia. Ele saíra em grupo para uma ‘caça ao pombo” e não percebera que sua arma não era confiável.
O primeiro tiro, literalmente, “saiu pela culatra”. A carga explodiu sobre seu rosto e um chumbinho rompeu o osso frontal alojando-se no tecido do cérebro. Queda imediata. Hospitalização. Neurocirurgia de emergência. Hemiplegia.
O fato dele não conseguir andar assustava a todos. Seus familiares permaneciam ao seu lado dia e noite, ainda no hospital. Cartazes com frases de autoajuda estavam afixados por toda a parede do apartamento. Ao chegar alguém conhecido seu, o cumprimento, um aperto de mão, tinha a força de uma tenaz. Não falava. Olhava-nos fixamente nos olhos.
Um mês depois, voltando de uma reunião em Cuiabá, passei por Goiânia para ver como ele estava. Em casa, deitado numa rede, continuava hemiplégico mas já falava e seu costumeiro bom humor estava voltando. A rede estava úmida de urina colorida pela medicação. Meu amigo muito mal controlava a micção e a evacuação. Ainda não firmava a passada. A família, numerosa, continuava a lhe dar total apoio. Os integrantes revezavam-se nos cuidados, mesmo morando à distância. Amor, fé e orações. Ao seu lado, sua mãe pediu-me que a ajudasse a levá-lo ao banheiro.
-Tia, você tem dois cabos de vassoura? Perguntei.
Ele lançou-me um olhar assustado do tipo: "o que estará ele tramando?”
Obtidos os cabos, tentei ensinar-lhe como, em movimentos sincronizados, locomover-se apoiado nas peças de madeira. Para sua garantia neste primeiro momento, caminhamos ao seu lado, apoiando-o, eu e sua mãe.
Algum tempo depois, chegando à Fortaleza, reencontrei-o, desta vez na casa do pai. Ele já caminhava com algum desembaraço dentro de casa e no quintal. Medicação controlada. Convidei-o então para, à noite, integrar comigo um grupo de amigos que estavam indo a um forró, desses tão comuns em Fortaleza. Relutante de início, pensou melhor e aceitou o convite.
Chegados ao forró, não demorou para que todos dançássemos. Eu fora privilegiado. Dançava com Vânia, um pé de valsa. Leve como uma pluma. Meu amigo dançava com Margareth, verdadeira professora. Forró e lambada eram com ela mesma. Em dado momento ele acercou-se de mim e pediu:
- Jean, me dá a Vânia. Ela é levinha. Margareth rebola muito e eu tenho medo de cair...!
Hoje meu amigo é um fisioterapeuta diplomado, altamente prestigiado na área, atuando em Fortaleza. Faz algum tempo que não o vejo. Quando o reencontrar vou perguntar-lhe se já incluiu em seu manual de reabilitação, a técnica dos cabos de vassoura e a dança com uma mulher levinha...


15.3.18

MEMÓRIAS CAPÍTULO 7: O NADADOR DA AGRONOMIA



O NADADOR DA AGRONOMIA
Por
Jean Kleber Mattos

Eu tinha dezessete anos quando apaixonei-me por uma garota de minha rua, em Fortaleza. Ela tinha quatorze. Obviamente os pais faziam restrições ao namoro dos menores. Não meus pais, mas os dela. Havia também a diferença de classe social. A família da garota era de classe média padrão e a minha era apenas remediada. Uma chance de nos encontrarmos seria se fossemos do mesmo clube. A família dela era sócia do famoso Náutico Atlético Cearense. Meu pai era sócio do Comercial Clube, bem mais modesto. Um amigo meu aconselhou-me tentar ingressar no Náutico como sócio atleta da natação.
- Não paga mensalidade – dizia ele.
Dei uma risada. Eu não sabia nadar.
Ocorreu-me que, sendo eu congregado mariano junto aos jesuítas, tinha acesso à piscina que eles tinham no Colégio Santo Inácio em Baturité, por ocasião dos retiros espirituais. Na primeira viagem, ganhei a piscina, obvio que na parte rasa, para aprender a nadar. Por um descuido, caí em determinado momento na parte funda e tive de ser retirado pelos colegas para não morrer afogado. No mesmo passeio, empenhei-me nas tentativas até que consegui nadar por seis metros. Vitória. Prossegui na tarefa e já estava nadando cinquenta metros alguns dias depois.
Quando voltei à Fortaleza procurei o treinador do Náutico, um russo, para concorrer a uma vaga na equipe.
-Quantos metros você nada num só tiro? – perguntou.
-Cem metros- falei
-Quando você conseguir nadar quatrocentos metros volte aqui.
Treinei por quase um mês no mar. Quando finalmente consegui nadar meio quilômetro, apresentei-me novamente.
O treinador me mandou nadar cem metros enquanto observava. Ao final disse:
- Um pouco lento e sem estilo. Vou lhe dar uma carteira provisória de quinze dias. Se ao cabo desse tempo você não conseguir nadar cem metros em um minuto e vinte segundos, está fora. OK?
- OK ! - falei.
Durante quinze dias fui sócio atleta do Náutico Atlético Cearense, treinando diariamente. Decorrido o prazo estabelecido, fiz o teste. Fui reprovado.
Eu era nadador fundista. Aquele nadador para grandes distâncias, mas que não tem velocidade. Um exemplo de fundista foi o capitão da marinha mercante britânica Matthew Webb que em  agosto de 1875 atravessou a nado o Canal da Mancha, cobrindo uma distância de 61 quilômetros em 21 horas e 45 minutos.
Por interferência de amigos que pertenciam à equipe de natação do Clube dos Diários, fui inscrito no grupo. Nosso ídolo na época era o nadador Manoel dos Santos que em 21 de setembro de 1961 no Rio de Janeiro, nadando sozinho na piscina do Clube de Regatas Guanabara, estabelecera um novo recorde mundial para os 100 metros livre, com o tempo de 53s6. Manoel também foi recordista sul-americano dos 100 metros livre por onze anos, entre 1958 e 1969. Ele nos deu aulas como convidado, e dizia que, em vésperas de competição para o nadador, as vinte quatro horas do dia  deveriam ser assim divididas: oito horas treinando, oito horas comendo e oito horas dormindo. Nosso treinamento incluía ginástica e nado livre. O Campeonato Cearense de Natação fora anunciado. Os clubes Náutico e Diários tinham as equipes de ponta na época. A diretoria do Náutico comunicou que o clube não participaria. Como consequência, as provas se dariam no Clube dos Diários, em piscina de 25 metros. Os atletas seriam apenas o do próprio clube. O treinador Jaime inscreveu-me na prova de quatrocentos metros, a qual, numa piscina de vinte e cinco metros acarreta dezesseis viradas. Fácil de confundir o atleta.
No dia da prova, pulei na água e nadei. Quando calculei que havia concluído, olhei pata trás e vi um nadador ainda vindo numa das raias. Como eu sabia que era o mais lento, virei para completar os cinquenta metros restantes. Fui flagrantemente o último a chegar. Fora da piscina, o diretor de esportes já cheio de whisky, berrou:
-Seu filho da puta ! Você vai ser expulso da equipe !
Meus colegas logo se aproximaram para me dizer que não levasse aquilo em consideração. Eu permaneceria na equipe.
O treinador Jaime acreditava realmente em meus dotes de fundista. Inscreveu-me então na famosa “Prova Heroica”. Eram seis quilômetros no mar. Passei a treinar intensivamente a partir de então. Cheguei a nadar três mil metros na piscina numa tarde. Tanto esforço resultou numa sinusite. Fiquei mal. Depois do tratamento, o médico vaticinou:
- Você não pode voltar a competir ! Se voltar, a sinusite volta !
Meus amigos do Clube dos Diários realmente gostavam de mim. Ao comunicar o laudo médico, o treinador Jaime mais uma vez me deu uma chance:
- Você é bem humorado – disse – vou inscrever você na equipe dos Aqualoucos.
Meu Deus. Aqualoucos são acrobatas e palhaços que fazem estripulias nos trampolins. Num ato de boa vontade, compareci ao treinamento. Jaime comandou:
-Suba no trampolim de três metros e salte !
Quando cheguei lá em cima e olhei para baixo, amarelei. Tinha pânico de altura. Chegara ao fim minha carreira de nadador, pensei. Não imaginava eu que dois anos depois encontrar-me-ia novamente às voltas com uma competição na água.
Em 1964, realizaram-se em Fortaleza as Olimpíadas Universitárias. Eu nem de longe imaginava em participar. Após o fracasso no Clube dos Diários eu mergulhara numa maratona de estudos, virando noites, para passar no vestibular. Consegui aprovação de primeira, para o curso de agronomia. Minha vida mudou. Ingressei na política estudantil, dormia tarde e frequentava todas as festas e “tertúlias” que podia. Nas festas, enchia a cara de “Cuba Libre”, uma mistura de Rum Bacardi com Coca-Cola, muito popular à época. Eu cursava então o segundo ano da escola.
Certo dia fui procurado por um colega do comitê olímpico da escola, que me falou:
- Jean, fizemos uma lista de possíveis nadadores para o time da escola e fomos informados de que você já nadou pelos Diários...
Esclareci que não havia sido um nadador de ponta e que minha vida de farras desde então me incapacitava para a natação competitiva.
-Temos três atletas inscritos – falou ele – falta apenas um para o revezamento. Você está fraco mas tem estilo e deslizamento. Você seria o primeiro a pular na água. Os outros atletas tentariam tirar a diferença. Contamos com a sua ajuda.
Eu não podia me furtar. Concordei. Eu já conhecia dois dos três atletas. Um era o Francisco Cunha, um cara estudioso, gostava de filosofar e tinha aptidão para a política. Viria a ser no futuro um expoente na EMATER de Santa Catarina. O outro era o José Albérsio Lima, a quem reencontraria bem mais tarde na Sociedade Brasileira de Fitopatologia. Chegaríamos a ocupar a presidência da sociedade, eu em 1974, ele em 1985.
O Cunha era disciplinado e bem técnico. Tomava glicose na veia em véspera de competição, o que era uma prática muito comum à época, principalmente para os casos de cólica hepática decorrente dos excessos de bebida alcoólica, o que não era, claro, o caso dele.
Fomos treinar na piscina de 25m do Colégio Militar, lugar escolhido para a competição. Nadei cem metros sob o olhar de Cunha. Ao final ele perguntou:
- Dá para nadar um pouco mais rápido?
Falei que ia tentar. Nadei mais algum tempo para testar a resistência e tentar melhorar o desempenho.
O dia da prova chegou. A primeira bateria era a prova de quatro por cem metros estilo livre. Saí na frente conforme combinado. Eram três viradas. Na terceira virada percebi que estava sem forças. Tentei o jogo de pernas para melhorar o deslizamento. Os braços pesavam. Estava ficando bem para trás.
- Vai morrer ! - gritava a plateia.
Cheguei ao fim e vi meu colega, o segundo do revezamento, saltando. Saí da piscina e fiquei deitado sobre o ladrilho, extenuado. As provas seguiam. Alguns minutos haviam se passado e meu colega do comitê aproximou-se e perguntou-me:
- Como você está ?
- Mais ou menos – respondi.
- Tem mais um revezamento. Este menor. São quatro estilos, cinquenta metros. Precisamos de você...
Quando subi à plataforma, a plateia se agitou.
- É agora que ele morre ! – gritavam.
Eram apenas cinquenta metros. Uma virada apenas, estilo livre. Fiz o que pude. Cheguei atrasado, claro, mas completei a minha participação.
Apenas três faculdades estavam concorrendo. Agronomia, Economia e Medicina. A medalha de bronze estava garantida. Dias depois da prova, contudo, eu teria uma agradável surpresa. Procurou-me o colega do comitê para entregar-me uma medalha de prata.
- Não era de bronze ? – perguntei.
- Era, mas descobriu-se que um professor nadou uma das provas pela Medicina, o que é proibido. A Medicina foi rebaixada. Você é vice-campeão olímpico.
Guardo a medalha até hoje.