Suaveolens

Este blog foi criado por um cearense apaixonado por plantas medicinais e por sua terra natal. O título Suaveolens é uma homenagem a Hyptis suaveolens uma planta medicinal e cheirosa chamada Bamburral no Ceará, e Hortelã do Mato em Brasília. Consultora Técnica: VANESSA DA SILVA MATTOS

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Local: Brasília, Distrito Federal, Brazil

Cearense, nascido em Fortaleza, no Ceará. Criado em Ipueiras, no mesmo estado até os oito anos. Foi universitário de agronomia em Fortaleza e em Recife. Formou-se em Pernambuco, na Universidade Rural. Obteve o título de Mestre em Microbiologia dos Solos pelo Instituto de Micologia da Universidade Federal de Pernambuco. Também obteve o Mestrado e o Doutorado em Fitopatologia pela Universidade de Brasília. Atualmente é pesquisador colaborador da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília.

30.8.11

SOU FILHA DO REI

Por
Dalinha Catunda
*
Nasci na terra da luz
Pegando sol na moleira
Tomando banho de açude
Pulando da ribanceira
Brincando de tibungar
Nos rios do meu lugar
Na meninice brejeira.
*
Em noite de lua cheia,
Sob o luar do sertão
Serenatas escutei
Nos acordes da paixão
Presente de namorados,
Poéticos, apaixonados,
Escravos do coração.
*
Feliz eu era e sabia
Nas terras de Alencar
No leque da carnaúba
Ouvia o vento cantar
Assobiando bonito
No entre palmas um agito
Formando um grácil bailar.
*
Nasce detrás de um serrote,
O rei sol na minha terra,
Mas na boquinha da noite
Quanta beleza ele encerra
Com a sua vermelhidão
Tinge de rubro o sertão
E se esconde atrás da serra.
*
No sertão do Ceará
Eu nasci e me criei.
Já andei por muitos reinos
Mas lá sou filha do rei!
No condado de Ipueiras
Depois de romper barreiras
Meu palacete montei.
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Maria de Lourdes Aragão Catunda, nascida em Ipueiras-Ceará, é conhecida nos meios literários como Dalinha Catunda, é poetisa, cordelista e cronista, sendo membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Também tem blog próprio - cantinhodadalinha.blogspot.com.

29.8.11

A VISAGEM

Por
Gonçalo Felipe

Fiquei assim: matutando
Com O TEMPO DAS BOTIJAS
Oh, meu pensar me corrijas
Se errado estou falando
E um pouco acrescentando
No que diz o jornalista
Nesse seu ponto de vista
O meu jornalista nobre
Diz que botijas descobre
Quem a visagem visita.

E se alguém conquista
Da visagem a confiança
Receberá como herança
O seu "tesouro" escondido
Porém fica decidido
Que o buraco não se tapa
Do contrário não escapa
De alterar seu destino
Sendo cruel e ferino
Desaparece do mapa.

Tem que deixar uma moeda
Pagando o buraco aberto
Não o fazendo, é certo
Ficar amaldiçoado
Na vida amedrontado
Termina enlouquecendo
Portanto, foi esse adendo
Que humilde acressentei
Se não fui claro, tentei.
Veja outro caso ocorrendo:

Tem muita gente sabendo
O agora o que acontece
Uma mulher aparece
Toda vestida de branco
Tem depoimento franco
Narrando bem claramente
Nem precisa ser vidente
Para ver essa tal visagem
De falar falta coragem
Ficam olhando somente.

Quero aqui deixar ciente:
Acredito com certeza.
Segundo D' Tereza
Ao tomar conhecimento,
Um espírito em sofrimento
Pode assim ficar vagando
E por certo procurando
Um ráio intenso de luz
Que ao bom caminho conduz
Sua dor amenizando.

E não andará mais penando
Por baixo de juazeiro
Andando sem paradeiro
Um certo preço pagando
Alguém a viu soluçando
Com um barulho no peito
Sem indentificar direito
Com que ele parecia
Apenas bem o ouvia
E o medo fazendo efeito.

Ilustração: site blig.ig.com.br/midorikamazaki/2009/04/09/lendas urbanas
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Gonçalo Felipe é o poeta de Nova Russas que colabora com o blog "Suaveolens" mediante seus poemas bem atualizados e sensíveis sobre nossa civilização, nossas vidas e nossos sentimentos.


19.8.11

O TEMPO DAS BOTIJAS

Por
Bérgson Frota

O povo nordestino tem certas peculiaridades que o distinguem dos de outras regiões brasileiras. São tradições e costumes que o pintam de maneira singular.
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Quando criança, comecei a ouvir lá no meu interior, histórias de descobridores de botijas, era o tempo das botijas que creio eu ainda não findou-se. Contavam os mais velhos que nos séculos XVIII, XIX e ainda quase metade do século XX.
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O povo do interior costumava guardar suas moedas de ouro, prata e cobre escondidos em latas de metal onde podiam ser conservadas ou em baús revestidos de chapa de metal e enterrados.
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O lugar era marcado por pedras, acidentes geográficos ou embaixo de grandes e velhas árvores. As latas eram colocadas nas paredes grossas das casas e os baús, longe, como já dito fora delas. O costume se fazia pela falta de bancos, pelo medo do roubo e por não ter com que gastar o muito lucrado.
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Sertanejos faziam quase tudo, e se às vezes tinham o que comprar, guardavam uma minguada economia que sobrava sempre e assim se mantinham. Em Ipueiras, foram encontradas várias botijas no correr de sua história, a mais recente na década de 1970.
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O descobridor derrubando as paredes de uma antiga casa encontrou socado numa grossa parede de canto uma lata, cheia de moedas de prata e ouro, não se sabe o valor, o certo é que silenciosamente em pouco tempo mudou-se com a família para uma capital do sudeste e só depois por parentes se soube do fato.
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Contornando o morro do Cristo, em Ipueiras , se via no caminho serpenteado, covas quadradas na medida de um grande ou médio baú, quase a beira da estrada carroçal. Não havia dúvida, e isso era fato corrente daquela região, muitas botijas foram certamente achadas. Dizem os mais velhos que às vezes o felizardo sonhava com o lugar, ou por pura sorte cavando encontrava.
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Para completar o quadro,era corrente a história de que ao cavar o astuto e ambicioso tinha visões macabras, como fogo queimando o corpo, cobras se enroscando nas penas e espíritos penados a mandar que parasse a escavação.
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O certo era que das histórias que ouvi muitos fugiram e se desequilibraram mentalmente, outros mais corajosos iam até o fim, e bastava abrir o baú de madeira carcomida, tudo sumia com um gemido medonho. O que levava estas botijas a serem esquecidas era ou a morte repentina do dono, e só ele sabia onde estava, ou pela idade o esquecimento que lhe fazia procurar e não mais achar o lugar correto.
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Outro fato era o sonho do lugar da botija, dizia-se que o espírito não teria paz enquanto não revelasse o segredo, o dinheiro que em vida não usufruiu, que o ouro e a prata o prendiam no lugar. Verdadeiro ou falso, muitos descobriram esses tesouros, e formou-se lenda no sertão, dinheiro não gasto traz a perdição do falecido. O tempo das botijas passou.
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Mas quem pode afirmar quantas ainda estão a esperar o seu descobridor. Com modernos aparelhos a detectar metais, um corajoso aventureiro não há de voltar de mãos vazias, ficando rico da noite para o dia e finalmente libertando o espírito de quem a enterrou.
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Crédito da imagem 1 : ultkm.blogspot.com
Crédito da imagem 2: fuleiragem.typepad.com/fuleira/2008/05/eu-me-amarro-em.html
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Bérgson Frota, escritor, contista e cronista, é formado em Direito (UNIFOR), Filosofia-Licenciatura (UECE) e Especialista em Metodologia do Ensino Médio e Fundamental (UVA), tem colaborado com os jornais O Povo e Diário do Nordeste, desenvolvendo um trabalho por ele descrito de resgate da memória cultural e produzindo artigos de relevância atual.

13.8.11

NOVA RUSSAS, EM FESTA!!

Por
Gonçalo Felipe

Chegou o mês de agosto
É festa em todas as praças
Nossa Santa Padroeira:
Nossa Senhora das Graças.
A festa É um encanto
Tem fiel em todo canto
Alegre brindando em taças.

Ela é filha de Ipueiras
Que deu-lhe a emancipação
No ano de trinta e um
Ainda nesta geração.
De lá prá cá em agosto
Acompanhamos com gosto
A festa de tradição.

Portanto, com emoção
E com palavra singela
Fiz estes versinhos simples
Todos dedicados à ela
A minha mente se aguça
Viva a nossa Nova Russas
Altaneira, nobre e bela.

Sou filho de Nova Russas
Sou neto de Ipueiras
Amo essas duas cidades
Cresci em suas ribeiras
Em ambas eu tenho raízes
Passei por dias felizes
Na Fazenda Cajazeiras

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Foto de Nova Russas SITE hjobrasil.com/ordem.asp?secao=30&categoria=369&subcategoria=659
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Gonçalo Felipe é o poeta de Nova Russas que colabora com o blog "Suaveolens" mediante seus poemas bem atualizados e sensíveis sobre nossa civilização, nossas vidas e nossos sentimentos.

12.8.11

JOVEM GUARDA

Por
Luiz Alpiano Viana

Os olhos, as mãos, os gestos e o coração falam mais alto, entre si, quando a voz emudece. Pois há momentos em nossa vida que a voz some, não sai, fica perdida. E só o coração esperneia como um burro bravo! Isso é o amor em demasia. Lembrança das tertúlias de domingo!

O velho estafeta dedilha na caixa de correspondência um batuque, um som, uma modinha. A nota musical bem audível lembra Wanderleia, Roberto e Celi Campelo quando estavam no auge de sua carreira.

As músicas daquele tempo são muito diferentes das de hoje. As canções que cantam agora não têm a poesia, nem o romantismo das dos anos 60. Naquela época a letra era um poema dos mais lindos.

A juventude tinha o sorriso nos lábios e o coração era o lugar próprio onde se guardavam do amor eterno às grandes paixões. Dançava-se agarradinho! A dama era uma princesa e o príncipe, o Rei. Para se aproximar da namorada, obedecia-se a um ritual sagrado. Pegar na mão, beijar, leva-se muito tempo. E por isso a gente se apaixonava cada vez mais um pelo outro.

Quantas vezes um seresteiro, à luz da lua, à porta de sua amada, cantava na voz de Altemar Dutra, Brigas! E os pais da moça - no estilo valentão em defesa de suas crias, - expulsava-os sem pensar que o luar era seu guia.

Suspirava de desejo o apaixonado mancebo; ela, do lado de dentro, chorava de saudade à noite inteira, querendo sair de lá para ficar ao vento. Só se ouviam os murmúrios e os esbarrar de cadeiras e nada dela sair...

Era amor de verdade que do coração brotava. Nunca pensou em ficar, o jovem daquela época, como fazem os de cá, criticando os de lá! Os homes daquele tempo são muito experientes. Usam da psicologia para entender o segredo que só o amor produz.

Os casais se respeitavam, queriam-se sem medida e sem alarde, mas tudo em pratos sagrados. Os filhos que ali nasciam, eram fiéis, amáveis e disciplinados. Muitos deles se criavam do mesmo jeitinho dos pais: obedientes e sem droga pelo resto da vida.

As pessoas deste século não se falam, só se negam; não têm Deus nem têm botica, e a verdade onde fica?

A doença deste século – que parece sem remédio – é não ter um grande amor. As pessoas vivem sós, principalmente as mais velhas. O estresse é o velho companheiro das multidões na mais intransitável avenida do destino.

Fidelidade e paixão não mais existem como era antigamente! Então, o que se tem para dar, se não for amor, se não for carinho! Não tem outra solução. Precisa-se de amar muito mais.

O homem dos anos sessenta é atencioso e amável. Experiente no amor, cuida com mais atenção de quem estiver ao seu lado. São qualidades intrínsecas de quem viveu um belo e iluminado passado.

Discorda o homem de hoje da forma como amavámos: educados, corteses, justos e soberanos. São esses os frutos do passado, dos anos da Jovem Guarda.

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Luiz Alpiano Viana, é um ipueirense apaixonado por sua terra natal. As suas memórias e saudades de Ipueiras estão sempre presentes em suas crônicas, a exemplo de “Saudade” e “O astuto cirurgião”, narrativas que trazem de volta velhas e boas recordações. Tendo morado na cidade de Crateús/CE e em Brasília/DF, atualmente reside em Forteleza/CE e é funcionário aposentado do Banco do Brasil.

9.8.11

O CAVALO DE CARNAÚBA

Por Bérgson Frota
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O cavalo de carnaúba, feito da haste e ampla folha desta árvore foi antes, quando a indústria de brinquedos não se fazia tão presente no interior nordestino, e em especial no Ceará, um dos brinquedos que a garotada mais apreciava.

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Eu tive o meu, e junto aos outros garotos formávamos bandos descendo da cidade ao leito seco do rio Jatobá, e daí nos embrenhávamos nas matas que na época em abundância cercavam o município.
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A poeira subia quando as folhas feito leques a fazer de conta o rabo do cavalo riscavam a areia quente. Quanto maior era a palma da folha, mais poeira levantava.
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Alguns destes “cavalos” eram comprados, outros nós mesmos fazíamos, subindo em pés carnaúbas e cortando quantas fossem preciso.
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Outras vezes na feira, que na época era aos dias de sábado, comprávamos o nosso alazão, já mais elaborado, com chicote, arreio, pintura, mas ainda feitos da haste da folha de carnaúba. Fruto da necessidade e acima de tudo da criatividade dos vendedores.
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Montados tornávamos heróis bandoleiros, ainda a lembrar os feitos do banditismo cangaceiro, e depois das façanhas do Zorro americano.
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Nas tardes de férias, nossa imaginação como mágica, fazia daquelas hastes com folhas longas feito rabos de vassouras, verdadeiros garanhões, e corríamos em batalha contra outros grupos. O sol quente não era empecilho, não havia calor, mas uma mágica adrenalina.
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Parávamos numa cacimba para dar de beber àqueles fantasiosos cavalos, depois voltávamos a correr e batalhar, como se fosse verdade aquele faz de conta que só as crianças vivem e sabem bem usufruírem. Chegávamos em casa ao pôr do sol. Sujos, às vezes feridos, trazendo cada um o seu cavalo.
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Bronca dos pais pela sujeira do corpo e banho obrigatório. Guardávamos no quintal, num abrigo natural, embaixo de uma árvore ou onde uma madeira desse cobertura a nossa preciosa montaria.
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O cavalo lá ficava, pensando ser de verdade, calado, imóvel, talvez a esperar quem sabe num novo dia, e mais aventuras viver.

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Foto da Carnaubeira: blog jornalismo-em.blogspot.com/
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Bérgson Frota, escritor, contista e cronista, é formado em Direito (UNIFOR), Filosofia-Licenciatura (UECE) e Especialista em Metodologia do Ensino Médio e Fundamental (UVA), tem colaborado com os jornais O Povo e Diário do Nordeste, desenvolvendo um trabalho por ele descrito de resgate da memória cultural e produzindo artigos de relevância atual.


4.8.11

À ESPERA DO CAVALO VERDE



(Publicado anteriormente na revista universitária CABORÈ no. 3 em Fortaleza Ceará em 1967).

Por
Marcondes Rosa de Sousa

Abriu bruscamente a porta recebendo uma forte rajada de vento na cara. Arrancou com os dentes a rolha da garrafa que trouxera na mão. Sorveu rápido um longo e último gole de cachaça no próprio gargalo. Jogou fora a garrafa.

Cuspitou à distância pedacinhos de rolha e raspou furioso os beiços na manga da camisa empoeirada do trabalho. Encheu os pulmões do ar frio e escuro da noite, o que lhe deu um pouco de calma.

Era quase tudo silêncio se não fôssem alguns toques retalhados de violão dos meninos do coronel, que, de vez em quando, chegavam misturados com o assobio do vento na palha do canavial, e a lenga-lenga da mulher sempre a reclamar, enquanto empurrava angu de farinha na boca da criança menor. Cala a boca, diabo! Tem fé em Deus. Quando Ele tarda é porque está no caminho — gritou João Biroba, engolindo seco a saliva.

Sentou-se na soleira da porta, puxou a peixeira da bainha no quarto, tirou do bolso um rolo de fumo e começou a espicaçá-lo na palma da mão. A cantilena da mulher continuava. Mulher faladeira é bicho que nem o Cão agüenta. Botava tudo a perder e vinha depois reclamar. Mas o que Deus uniu o homem não separa — já dizia o padre Gonçalo. O jeito era carregar a cruz.

Derramou o fumo amassado na papelina. Colou-a com cuspo e botou o cigarro no canto da boca. “Menino, traz um tição de fogo pro mode acender meu cigarro!” Lá longe aparecia e desaparecia uma luzinha que denundava a casa do coronel, atrás do canavial. A esta hora, todo mundo estava lá ouvindo os meninos cantar. Vinham da capital uma vez por ano... “Leva o tição de volta!” — disse acendendo o cigarro e contaminando o ar de baforadas cheirosas. O vento soprando frio, trazendo o assobio do canavial. Uns meses atrás, tinha esse canavial de meia com o coronel. O diabo da mulher, com a falação, tinha botado tudo a perder. Deitou o pé na estrada, andou mexericando lá pras bandas de riba com as comadres.

D. Maria José, mulher do coronel, não tolerava intrigas nas suas posses. Nem gostava de desaforos. O homem era bom. A mulher dele, o povo contava que tinha um espírito nos couros. O coronel dizia que era doença, que era pra gente aturar. Tinha andado nos melhores doutores. Nada. Que doença que nada. Devia ser mesmo era arte do diango. No dia que estava boa, dava presente a todo morador. Conversava com todo mundo. Mas outros... Liberá mé dominé!

O coronel pagou o serviço todo. Não queria confusão nem os escândalos da mulher. Por isso fazia as vontades dela. Mulher só serve mesmo para atrapalhar os negócios dos homens. Agora morava naquela casinha velha de taipa do compadre Chico Salu, plantando roça numa pontinha de terra. Perdida a esperança de juntar uns trocadinhos para adquirir uma glebazinha qualquer. Pobre só pode ter terra nas unhas e assim mesmo quando lava as mãos o rio carrega.

Saudade do canavial. Se fôsse de dia... A verdura fazia qualquer um perder de vista, O escuro tapava tudo. Agora era confiar em Deus que lhe mandasse chuva para o roçado. Daria ao menos umas terças de farinha para asustança da família. Mas aquele vento... Foi assim na última seca. Mas podia até ser, O céu estava bonito. O vento é o cavalo da chuva, dizia sempre o mestre Joaquim. Talvez ela quisesse se apear e se arranchar umas horas no seu roçado.

Biroba levantou-se. Caminhou para a cozinha. Estava com sede. Enfiou a lata de óleo no pote e a água toda entrou-lhe num gluglu repetido. Enfiou, de novo, a lata no torno da parede e ficou a olhar os meninos que comiam. Sentados, as pernas trançadas, no chão úmido de terra batida, cada um levando, da lata de doce, a colher derramando de feijão com farinha. A mulher, no quartinho, balançando a rede suja e remendada do caçula, pendurada nas ripas do telhado baixo, grunhindo cantigas indecifráveis, entre cuspidelas de fumo mascado.

Pensativo, encaminhou-se, indeciso, para a porta da frente, a balançar a cabeça. Parou. Mais uma vez a noite lhe entrou nos pulmões. A luz da lamparina, do interior da casa, projetava-lhe no terreiro, longa e larga, a sombra. Era forte. No sertão, cansava de pegar à unha boi brabo. Sem gibão, montado no osso, galopando pelas caatingas.

Cavava leira para plantar mandioca por três homens dali da serra. Cortava cana para uma junta de bois puxar no engenho. O dia inteiro. Descia correndo a ladeira quando faltava animal sempre que era preciso chamar urgente médico para alguém que adoecia. Nem burro bom acompanhava. E de noite. Não tinha medo de lobisomem. Quantas vezes, nas noites de lua, durante a seca, não tinha percorrido aquele sertão velho, tangendo pelas estradas o gado faminto para escapar nas soltas do Piauí. E nunca tinha visto visagem ou caipora. Lá existia!... Isto era história de frouxo. Por precaução, andava sempre com peles de fumo no bolso... Gostava quando o patrão, vendo-o trabalhar, dizia para os outros: “este homem é um touro”. Bom homem o coronel. Bom mesmo era viajar com ele no tempo da política, visitando os chefes políticos. Onde chegavam, um almoção. Tempo bom. Mas ai de quem tocasse no coronel. Um minuto e já estava no chão. Biroba garantia.

Era um homem bom o coronel. Os meninos também. Biroba lembrava brava aquela vez que ninguém tinha coragem de bombear veneno na casa de um mangangá. Apostou um conto de réis que matava de enxada, sem veneno sem nada. Arrancou com panela e tudo. “Bicho feroz da molesta é mangangá.” Mas depois que o sangue esquenta... Os meninos foram buscar remédio. Precisava lá remédio...

Outro dia, uma coraizinha que lhe mordeu a mão. Eles lhe deram dinheiro para tomar soro. Matou o bicho na bodega, guardou o resto do dinheiro para comprar de feijão. A mão só fez inchar.

João Biroba olhou o céu. Parece que a chuva tinha emprestado seu cavalo para a lua passear ou vir dar algum recado. Ela vinha mais tarde, com certeza.

A luz da casa do coronel já tinha se apagado. Tudo agora era silêncio. O verde do canavial aos poucos ia surgindo. Biroba fechou vagarosamente, cuidadosamente a porta e foi para o quartinho deitar-se.

Sentou-se na rede, devagar para não balançar os caibros, onde estavam armadas as redes das crianças e da mulher. Benzeu-se e pediu chuva. Sem chuva não tinha serviço. Não aguentava esperar quatro ou cinco meses para poder arrancar a mandioca. A mulher precisando vestido. As duas meninas também. Os meninos com os quartos de fora. Eles podiam esperar uma situação melhor. Menino só presta criado na dureza. Só presta macho pra pegar o pesado de cedo. Biroba andava de bucho de fora com a camisa sem botão. Não podia ir à missa na cidade ou um samba qualquer. Não tinha diversão. Só fazer rasto da casa para o roçado.

Limpou os pés, esfregando um no outro, e se deitou. O diabo do vento já tinha aberto uma brecha nas palhas da cumeeira. Estavam todas já secas. Era preciso cobrir de novo a casa. Ir atrás de palmeiras no tope da serra. Isso era lá trabalho de cristão. O frio mexia com todo mundo no quarto. Biroba tinha de rebocar a parede com algumas mancheias de barro. O resto do feijão estava se acabando. O leite do menino também.

Os chocalhos de um comboio passando longe na estrada. Dormir para no dia seguinte pedir ao coronel uma pontinha de serviço. Tirar o dinheiro adiantado. Comprar feijão e uma caixa daquele leite que os estrangeiros mandam para os pobres.
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Foto do cavalo verde: site emule.com.br
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Marcondes Rosa de Sousa, advogado, é professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade Estadual do Ceará (UECe). É uma das maiores autoridades em educação do Brasil. Ex-presidente do Conselho de Educação do Ceará e do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação, é Colunista do jornal " O Povo ", onde mantém seus artigos quinzenais.marcondesrosa@gmail.com